LIVRO

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quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Poema de Sete Faces (Carlos Drummond de Andrade)

Quando nasci, um anjo torto


desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.



As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul,

não houvesse tantos desejos.



O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.



O homem atrás do bigode

é sério, simples e forte.

Quase não conversa.

Tem poucos, raros amigos

o homem atrás dos óculos e do bigode.



Meu Deus, por que me abandonaste

se sabias que eu não era Deus

se sabias que eu era fraco.



Mundo mundo, vasto mundo,

se eu me chamasse Raimundo

seria uma rima, não seria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é meu coração.



Eu não devia te dizer

mas essa lua

mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo.



Porque (Carlos Drummond de Andrade)



Amor meu, minhas penas, meu delírio,

Aonde quer que vás, irá contigo

Meu corpo, mais que um corpo, irá um'alma,

Sabendo embora ser perdido intento

O de cingir-te forte de tal modo

Que, desde então se misturando as partes,

Resultaria o mais perfeito andrógino

Nunca citado em lendas e cimélios

Amor meu, punhal meu, fera miragem

Consubstanciada em vulto feminino,

Por que não me libertas do teu jugo,

Por que não me convertes em rochedo,

Por que não me eliminas do sistema

Dos humanos prostrados, miseráveis,

Por que preferes doer-me como chaga

E fazer dessa chaga meu prazer?



A Um Ausente (Carlos Drummond de Andrade)



Tenho razão de sentir saudade,

tenho razão de te acusar.

Houve um pacto implícito que rompeste

e sem te despedires foste embora.

Detonaste o pacto.

Detonaste a vida geral, a comum aquiescência

de viver e explorar os rumos de obscuridade

sem prazo sem consulta sem provocação

até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.

Teu ponteiro enloqueceu, enloquecendo nossas horas.

Que poderias ter feito de mais grave

do que o ato sem continuação, o ato em si,

o ato que não ousamos nem sabemos ousar

porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,

de nossa convivência em falas camaradas,

simples apertar de mãos, nem isso, voz

modulando sílabas conhecidas e banais

que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.

Sim, acuso-te porque fizeste

o não previsto nas leis da amizade e da natureza

nem nos deixaste sequer o direito de indagar

porque o fizeste, porque te foste.



Inconfesso Desejo (Carlos Drummond de Andrade)



Queria ter coragem

Para falar deste segredo

Queria poder declarar ao mundo

Este amor

Não me falta vontade

Não me falta desejo

Você é minha vontade

Meu maior desejo

Queria poder gritar

Esta loucura saudável

Que é estar em teus braços

Perdido pelos teus beijos

Sentindo-me louco de desejo

Queria recitar versos

Cantar aos quatros ventos

As palavras que brotam

Você é a inspiração

Minha motivação

Queria falar dos sonhos

Dizer os meus secretos desejos

Que é largar tudo

Para viver com você

Este inconfesso desejo



A Verdade (Carlos Drummond de Andrade)



A porta da verdade estava aberta,

Mas só deixava passar

Meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,

Porque a meia pessoa que entrava

Só trazia o perfil de meia verdade,

E a sua segunda metade

Voltava igualmente com meios perfis

E os meios perfis não coincidiam verdade...

Arrebentaram a porta.

Derrubaram a porta,

Chegaram ao lugar luminoso

Onde a verdade esplendia seus fogos.

Era dividida em metades

Diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual

a metade mais bela.

Nenhuma das duas era totalmente bela

E carecia optar.

Cada um optou conforme

Seu capricho,

sua ilusão,

sua miopia.



As Sem-razões do Amor (Carlos Drummond de Andrade)



Eu te amo porque te amo.

Não precisas ser amante,

e nem sempre sabes sê-lo.

Eu te amo porque te amo.

Amor é estado de graça

e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,

é semeado no vento,

na cachoeira, no eclipse.

Amor foge a dicionários

e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo

bastante ou demais a mim.

Porque amor não se troca,

não se conjuga nem se ama.

Porque amor é amor a nada,

feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,

e da morte vencedor,

por mais que o matem (e matam)

a cada instante de amor.





Ausência (Carlos Drummond de Andrade)



Por muito tempo achei que a ausência é falta.

E lastimava, ignorante, a falta.

Hoje não a lastimo.

Não há falta na ausência.

A ausência é um estar em mim.

E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,

que rio e danço e invento exclamações alegres,

porque a ausência, essa ausência assimilada,

ninguém a rouba mais de mim.



Os Ombros Suportam o Mundo (Drummond)



Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.

Tempo de absoluta depuração.

Tempo em que não se diz mais: meu amor.

Porque o amor resultou inútil.

E os olhos não choram.

E as mãos tecem apenas o rude trabalho.

E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.

Ficaste sozinho, a luz apagou-se,

mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.

És todo certeza, já não sabes sofrer.

E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?

Teus ombros suportam o mundo

e ele não pesa mais que a mão de uma criança.

As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios

provam apenas que a vida prossegue

e nem todos se libertaram ainda.

Alguns, achando bárbaro o espetáculo

prefeririam (os delicados) morrer.

Chegou um tempo em que não adianta morrer.

Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.

A vida apenas, sem mistificação.



Quadrilha (Carlos Drummond de Andrade)



João amava Teresa que amava Raimundo

que amava Maria que amava

Joaquim que amava Lili

que não amava ninguém.

João foi para os Estados Unidos,

Teresa para o convento,

Raimundo morreu de desastre,

Maria ficou pra tia,

Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes

que não tinha entrado na história.



A Língua Lambe (Carlos Drummond de Andrade)



A língua lambe as pétalas vermelhas

da rosa pluriaberta; a língua lavra

certo oculto botão, e vai tecendo

lépidas variações de leves ritmos.

E lambe, lambilonga, lambilenta,

a licorina gruta cabeluda,

e, quanto mais lambente, mais ativa,

atinge o céu do céu, entre gemidos,

entre gritos, balidos e rugidos

de leões na floresta, enfurecidos



Para Sempre (Drummond)



Por que Deus permite

que as mães vão-se embora?

Mãe não tem limite,

é tempo sem hora,

luz que não apaga

quando sopra o vento

e chuva desaba,

veludo escondido

na pele enrugada,

água pura, ar puro,

puro pensamento.

Morrer acontece

com o que é breve e passa

sem deixar vestígio.

Mãe, na sua graça,

é eternidade.

Por que Deus se lembra

- mistério profundo -

de tirá-la um dia?

Fosse eu Rei do Mundo,

baixava uma lei:

Mãe não morre nunca,

mãe ficará sempre

junto de seu filho

e ele, velho embora,

será pequenino

feito grão de milho.



Fazenda (Drummond)



Vejo o Retiro: suspiro

no vale fundo.

O Retiro ficava longe

do oceanomundo.

Ninguém sabia da Rússia

com sua foice.

A morte escolhia a forma

breve de um coice.

Mulher, abundavam negras

socando milho.

Rês morta, urubus rasantes,

logo em concílio.

O amor das éguas rinchava

no azul do pasto.

E criação e gente, em liga,

tudo era casto..





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